A FÁBRICA DOS HOMENS DE BEM

Quem passava pela rua notava que algo de importante ia acontecer naquela segunda-feira. Eram caminhões que chegavam, pintores e marceneiros apressados num corre-corre quase frenético. Eram ruídos ora ensurdecedores ora constantes martelando a curiosidade dos aposentados. Naquela cidade, fazia tempo que não acontecia nada de novo. Era uma cidade como outra qualquer. Praças mal cuidadas, ruas sujas, políticos desonestos, favelas, desempregados, noticiários cheios de tragédias, gosto pelo carnaval em todas as épocas e pela cerveja gelada em todas as horas. Mas estava para acontecer algo que marcaria aquela cidade para todo o sempre. Algo realmente inovador e sem precedentes. Isso porque estava para ser inaugurada a primeira unidade de um empreendimento sensacional e revolucionário. Somente os desocupados mais insistentes puderam enxergar as letras garrafais da placa que estava sendo colocada no final de um dia de preparações intensas, e eles não puderam conter a surpresa e o espanto quando viram: FÁBRICA DOS HOMENS DE BEM. Afinal o que viria ser aquilo ? O que essa fábrica produzia ? Será que ia afetar a vida da cidade ? Quantos turnos trabalharia ? Será que ia empregar aposentados ? Perguntavam-se como um bando de pardais. Naquela noite eles foram dormir sem respostas pois não encontraram nada falando a respeito.


Finalmente o grande dia chegou. Mal tomaram seu surrado café e foram desesperados para a frente da fábrica. Não podiam acreditar no que viam. Como isso podia acontecer ? De um lado do grande e imponente portão da fábrica, uma fila imensa de mendigos aguardava a entrada. Do outro, vez por outra saiam pessoas abastadas, bem sucedidas, executivos, empresários, pensavam eles. Os mendigos com aquele cheiro característico, alguns trazendo moscas de estimação, com aquelas roupas da moda dos excluídos, em tecidos e cores somente obtidas na poluição e dias sem banho. Os abastados com ternos bem cortados, gel no cabelo, cortes chanel, sapatos reluzentes, taiês e perfumes parecendo importados. Aquela fábrica era democrática ! Unia gente de todas as classes sociais em seu quadro de pessoal. Vai ver que empregavam também aposentados.

Não sei se era democrática, mas era no mínimo diferente. Na verdade aquelas pessoas não eram funcionários, eram insumos e produtos da fábrica. Na captação entravam os mendigos, desempregados, pessoas entregues a má sorte do abandono. Lá era feita uma espécie de triagem. Homens para um lado, mulheres para o outro. Não havia outras opções. Eles eram encaminhados para uma espécie de corredor de metal numa fila indiana. Braços mecânicos fisgavam-lhes as roupas, arrancando-lhes com precisão e velocidade. As roupas eram colocadas numa grande esteira rolante e iam direto para um enorme tanque. Lá eram praticamente desintegradas para a geração de novos fios de tecido. Estes fios geravam novas roupas com os melhores moldes do eixo Milão-Londres. Os usuários por sua vez não ficavam para traz. Eram também colocados num tanque e recebiam várias descargas de produtos de limpeza e beleza. Também recebiam descargas de produtos para piolhos, sarna e micoses. De tempos em tempos o tanque era acionado e mexia-se como uma máquina de lavar. A espuma crescia que quase encobria a cabeça de todos. Depois iam para o setor de lavagem individual, onde em boxes separados recebiam uma agradável e repousante sessão de fortíssimos jatos de água com perfume e hidratante, quentes e gelados.

Depois da lavagem, eles eram levados para o setor encarregado dos pelos. Ali tinham seus cabelos cortados, barbas feitas, axilas aparadas, pernas depiladas. Nem as orelhas e os narizes escapavam. Nem outras coisas também. Tudo era verificado. Só então iam para o setor de higiene bucal. Lá eles ficavam de frente para pias automáticas, que colocavam mangueirinhas nas suas bocas com higienizadores bucais e pastas nos sabores de framboesa, hortelã e laranja cravo, e nos sabores lançamentos de fruta-pão, sapoti e beringela. Depois uma escova automática acertava as suas bocas e fazia os movimentos certos de escovação em tempo recorde de 6,5 segundos. No fim eles eram encaminhados para cadeiras de dentistas, onde seus dentes eram clareados, obturados, arrancados, implantados, por máquinas que em 15 segundos concluíam o serviço.

Limpos e com bom hálito, iam para o setor médico. Lá eram totalmente examinados, da ponta do dedo do pé ao fio de cabelo da cabeça, buscando por doenças e imperfeições. Se preciso fosse, cirurgias eram feitas e remédios eram administrados. Mas lá na fábrica eram diferentes. Ela dispunha de tecnologia única, na qual as cirurgias não duravam mais que 1 minuto qualquer que fosse ela, e os remédios faziam efeito definitivo em 30 segundos, não precisando de outras doses. Curados dos males que possuíssem iam para o setor de estética. Lipo-aspiração, plástica de nariz, alisamento de cabelos, implantação de cilicone, correção imediata de desvios na coluna, eram uns dos serviços daquele setor. Tudo com a mesma tecnologia do setor médico. Rápido e indolor. De uma forma ou de outra todos de lá saíam bonitos.

O setor de vestuário era um dos mais espetaculares. As roupas reprocessadas, viravam peças dignas de desfiles de modas. Eram escolhidas por computador de acordo com o perfil físico de cada um, combinando cores e estilos. Os calçados da mesma forma. Os acessórios também. Era uma maravilha. Depois de vestidos devidamente, eles eram encaminhados para um imenso refeitório que mais parecia restaurante, onde eram instruídos em etiqueta e gostos variados. Eram servidos com pratos internacionais, e ao mesmo tempo instruídos em história e geografia do local de onde se originou a refeição. Era um banquete. Telões apresentavam os assuntos e microcâmeras acompanhavam cada um, avisando dos movimentos e condutas erradas na mesa. Monitores situavam-se estrategicamente por perto, lembrando a todos do melhor comportamento. Ninguém podia deixar de aprender. Depois de alimentados e educados, eles iam para o setor de seleção. Lá era coletado o DNA de cada um e analisada as tendências para o trabalho. Se podiam ser comunicativos, bons com números, analíticos, decisores, dinâmicos, o DNA informava. Daí eram encaminhados para as salas de treinamento instantâneo. Em 10 minutos, através de métodos desenvolvidos no departamento de pesquisa educacional da fábrica, eles eram preparados para exercerem profissões diversas. Depois eram encaminhados para o setor de despacho, onde atenciosas assistentes sociais explicavam o emprego que estava a sua espera, vindo dos convênios que a fábrica tinha em todo o mundo. Em 50 minutos no máximo, incluindo o tempo de repetição, eles saiam de lá limpos, curados, vestidos, alimentados, educados, treinados e empregados.


Era um sucesso ! Todos os dias uma multidão se aglomerava na porta da fábrica em busca de uma oportunidade. Dizem até que o seu presidente, num discurso entusiasmado na festa do primeiro mês de operação, disse que já haviam interesses de instalar unidades na África e em toda América Latina. Mas com o passar dos meses, foi notada uma certa caída no movimento. Em um ano já não ia ninguém na porta, o que levou a inauguração de um novo serviço: A captação móvel. Enormes Vans saíam pela cidade em busca de matéria prima, que pasmem, escondiam-se como podiam. Como nem todos tinham a mesma sorte, alguns eram colocados naqueles carros e levados para a fábrica ao som de música clássica no mais alto volume. Mas infelizmente, nem mesmo esse arrojado serviço foi capaz de impedir o completo desaparecimento da matéria-prima da fábrica. Em dois anos, ela faliu. Todos os mendigos e desafortunados mudaram-se para bem longe dela. Tão longe quanto puderam. Alguns até foram para outros países.

- Não sei como isso pôde acontecer, dizia um aposentado inconformado com a perda da esperança de arrumar uma ocupação. Era uma fábrica tão boa... Quanto benefício ela gerou ! Quantos homens de bem ela fez para a sociedade ! Ela seria uma multinacional ! O que pode ter dado errado ? O que ela pode ter esquecido ?

- As almas ! Respondeu o amigo enquanto jogava com o cavalo no velho tabuleiro de xadrez. Ela esqueceu das almas.

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