HODAD E RAPTOR



Os cases são estórias que ilustram a realidade e servem para que aprendamos sobre ela. Espera-se que com isso possamos torná-la melhor. A estória abaixo foi publicada recentente pela bela jornalista premiada Cristiane Segatto, em seu espaço na revista Época como parte de um artigo sobre medicina, assunto que se dedica há 17 anos. Ela serve muito bem como paralelo para executivos, gestores públicos e privados, e também para professores, advogados, engenheiros, operários, jornalistas porque não, e toda sorte de profissionais. Isso significa dizer que a situação ocorre não só em hospitais com médicos, mas em muitos outros lugares. A leitura vale a pena.

"Em seu primeiro dia como residente da Universidade Harvard, o cirurgião americano Martin Makary ouviu uma frase que o marcaria para sempre. “Esse paciente é do Hodad”, disse um dos residentes. O jovem Makary, encantado por receber treinamento num dos centros médicos mais respeitados do mundo, mal podia esperar o momento de avistar o astro e, se tudo corresse bem, ser aceito como discípulo. Mais tarde, envergonhado, confessou ao colega que nunca tinha ouvido falar no cirurgião Hodad. O amigo respondeu: "Dr. Westchester é Hodad. É assim que nós, os residentes, o chamamos. H-O-D-A-D significa Hands of Death and Destruction (mãos de morte e destruição)”. O médico era um perigo ambulante. O excesso de autoconfiança o levava a cometer sucessivos erros cirúrgicos. Hodad se achava bom em tudo. Arriscava-se e colocava os doentes ao risco ao realizar operações que não eram sua especialidade. Os pacientes nem desconfiavam. Agradeciam pelo tratamento recebido e o recomendavam aos amigos. O jovem Makary não entendia como os pacientes podiam ter uma percepção tão equivocada de um cirurgião que, sob o julgamento técnico dos colegas, era ruim. Conseguiu entender quando passou a acompanhar o médico mais velho nas visitas aos pacientes. Hodad era simpático, divertido, caloroso, bom de conversa. Os pacientes o adoravam. Até quando uma complicação ocorria, o que não era raro, Hodad era capaz de arranjar uma desculpa. Os doentes iam para casa convencidos de que ele não errara e felizes por terem estado em boas mãos. Do ponto de vista técnico, Hodad era uma fraude. Do ponto de vista de popularidade, era um espetáculo.

No mesmo hospital, trabalhava outro cirurgião. Um grandalhão, de cara amarrada e péssimos modos. Grosseiro, na maior parte das vezes. Sempre pronto a humilhar as enfermeiras e outros funcionários. Os alunos o chamavam de Raptor. Tinham medo dele. Os pacientes também. Raptor acumulava queixas de maus modos no departamento de atendimento ao cliente. Muitos pediam para ser operados por Hodad, o picareta com fama de excelente médico. Os observadores bem informados ficavam intrigados com a ironia da situação. Apesar de seu comportamento terrível, Raptor tinha qualidade técnica muito acima da média. A incrível precisão cirúrgica e a insistência de se aproximar da perfeição a cada procedimento fizeram dele o cirurgião de melhor reputação entre os colegas. Até os que odiavam seus modos eram capazes de reconhecer sua superioridade técnica. Ao longo da carreira, Makary viu chefes de Estado, celebridades, CEOs e outros poderosos caírem nas mãos de gente como Hodad, sem ter a menor ideia do risco que corriam. Viu também moradores de rua operados por brilhantes Raptors, sem desconfiar de que eles eram a elite da profissão. Essa é uma história universal. Quase todo hospital tem um Hodad e um Raptor."

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