A IGREJA DE PEDRO


Quando a tarde mostrava os seus tons de fim do dia, o campo logo se enchia de meninos de várias idades. Duas pedras serviam de traves e um disputado racha era a alegria daqueles corações pequenos, distantes do mundo que os assistia. O jogo durava até o cair da noite, quando com dificuldade se enxergava a bola. Eram dribles e sonhos, risos e gritos, correria e vontade, numa bela paisagem para quem de longe pudesse ver. O campo onde tal encontro ocorria, ficava num terreno baldio e imenso, cercado de outros terrenos baldios, casas e blocos de apartamentos. Ali existiam muitas moradias que iam de apartamentos modestos até casas com piscinas e grandes jardins. As ruas ainda eram de barro e o meio fio servia de banco para as conversas após o jogo. Os meninos vinham de todos os lugares. Apareciam como por encanto, e não importando de onde vinham, formavam um só grupo. Eram brancos e morenos, altos e baixos, ricos e pobres, ali eles eram iguais. Eram somente meninos que jogavam futebol.

Naquele terreno, assim se passavam as tardes, como se nada mudasse. Mas um dia, o  terreno ao lado do campo começou a receber visitantes até então estranhos a tudo que existia por lá. Eram visitantes tão pobres, mas tão pobres, que  suas casas eram feitas de pedaços de papelão. Eles se instalaram naquele terreno em frente ao campo, com alguns barracos e famílias, cães e galinhas todos juntos. As crianças mais novas, vestiam apenas calções encardidos, tinham os cabelos muito assanhados e o rosto sujo, a barriga grande e choravam sempre. Eram as vezes tratadas com violência pelos mais velhos e vivam no chão. Não se sabia de onde vieram aqueles visitantes, nem tão pouco quanto tempo iam passar ali. Os meninos que jogavam futebol olhavam com curiosidade aquela comunidade que aparecera quase que de um dia para o outro, e a batizaram de “Papelândia”. Assim,  no fim das tardes naquele lugar, o racha agora tinha espectadores atentos, que na beira do campo participavam da emoção do gol. Não demorou muito, e os espectadores começaram a jogar também, fazendo parte do maior e melhor evento daquele terreno baldio. A Papelândia parecia ter um líder. Era o homem mais velho da comunidade. Tinha a pele curtida do sol, cabelos e barbas grisalhas e encaracoladas, o corpo de quem tinha muito trabalhado, e vestes surradas por uma vida de privações. Usava sempre as calças arregaçadas amarrada por um velho cinto, e a camisa entre aberta. O rosto já tinha muitas rugas, mas ainda possui vigor nos movimentos. Não era um velho. Pedro era o seu nome. Seu Pedro era como os meninos o chamavam. E ali ele morou por muitos dias e meses. Ali era o seu lugar.

Como os passos de uma caminhada, outra novidade apresentou-se no decorrer do tempo. Naquela tarde, como faziam sempre, os meninos apareceram de todos os lugares e dirigiram-se ao campo. Mas naquela tarde não houve jogo. Lá já estavam outras pessoas, reunidas no centro do terreno,  num círculo quase perfeito. Eram senhoras e senhores, gente bem vestida e jovens com cânticos e violões. Eles estavam  falando de uma grande obra. Uma obra que muito ia engrandecer aquela localidade e todos que ali viviam. Os meninos ficaram em volta com a mesma curiosidade de sempre, tentando ver algo por entre os adultos. Mas no meio do círculo não havia nada até o momento em que Seu Pedro foi chamado para colocar uma grande pedra no centro. Ela tinha em cimento a data e as inscrições: “A Primeira Pedra”. Seu Pedro sozinho a apanhou e colocou no local indicado por eles, curvando-se para chegar ao ao chão. Depois voltou para fora do círculo, onde estava assistindo desde o começo. Eles cantaram canções que falavam de fé. Diziam que em tudo encontravam a Deus, no céu, na terra, aonde for. Diziam que era impossível não crer nele. Deram-se as mãos e rezaram juntos por alguns momentos. Depois dispersaram-se deixando aquela pedra bem no meio do campo. Todos foram para as suas casas e lá contaram que no terreno baldio, onde os rachas mais disputados aconteciam, iria ser construída uma Igreja.

As tardes seguintes não conseguiram conter a vontade de chutar a bola daqueles meninos. E mesmo com a pedra assentada no meio do campo, os jogos começaram a acontecer. No início as jogadas se faziam desviando-se da pedra, algumas tabelas nela existiram e até algumas topadas também. Com o passar das partidas e da demora em começar aquela importante obra, os meninos se juntaram e a colocaram num canto.  Agora as jogadas de meio de campo estavam de novo desimpedidas, e o racha corria solto de uma trave para a outra sem riscos. O tempo passou e o mato encobriu a pedra afastada. Ninguém mais lembrava dela. O campo era dos meninos.

Um dia esta posse foi definitivamente desfeita. O campo chegou à tarde todo marcado, com cordões e varetas, cheio de areia e pedras em sua volta. Nos dias seguintes, num movimento barulhento e constante, homens trabalhavam descarregando areia, pedras e cimento, e outros abriam valas com picaretas no duro barro do terreno. Os gritos dos meninos foram substituídos pelo roncos das máquinas e o golpe contido das picaretas. Seu Pedro assim começou a trabalhar na obra, cavando os alicerces que mais tarde iriam sustentar as paredes daquele templo. Certamente, muitas vezes o suor de sua testa se misturou a massa que fazia, guardando para sempre um pouco dele naquela construção. Depois, ajudou a levantar as paredes e cobrir os telhados. Nos finais de semana, quando todos iam para suas casas e bairros, era ele quem ficava do seu barraco tomando conta da obra.

Os dias se passaram e ficou pronta a Igreja. Ela não tinha as linhas das Igrejas antigas, mas trazia em sua arquitetura os traços da modernidade. Ela foi construída de costas para a casa grande com piscina e grandes jardins e de frente para os blocos de modestos apartamentos. A Papelândia ficou ao seu lado. Depois de pronta ficou bonita e Seu Pedro ficou como uma espécie de seu zelador. Ele varria a poeira e as folhas secas que insistiam em pousar nas suas calçadas, abria as portas bem antes das celebrações e as fechava após a última pessoa sair. Durante a noite, era o vigia sentado à sua frente.

De lá, Seu Pedro viu o tempo passar. Os meninos tornaram-se homens. As ruas foram asfaltadas e velozes ônibus passaram a levar pessoas pensativas. Conta-se que Seu Pedro viveu todo o tempo na mesma casa de papelão. E que um dia, sentiu-se mal e agonizou no chão do prédio que ajudou a construir, sem nenhum socorro. Em certos dias, pode se ouvir de longe as celebrações pelo som do alto-falante. Muitos nomes são citados. Mateus, Marcos, Lucas, João, Paulo e até Pedro. A verdadeira pedra sobre a qual foi edificada aquela Igreja.



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