REFLETINDO SOBRE O DISC




Willian Marston publicou há praticamente 100 atrás, as bases de uma ferramenta bastante difundida na psicologia e nos profissionais de recursos humanos, “provavelmente a metodologia mais utilizada no mundo para análise de perfil comportamental.”  Por ela, todos nós podemos ser classificados em 4 tipos fundamentais de comportamento, sendo eles Dominância, Influência, Estabilidade e Conformidade, cada um deles com características específicas. Com base nestes perfis, vem o acrônico em inglês DISC, nome que conhecemos mais comumente. 


A tentativa de estabelecer uma tipologia humana tem muitas outras iniciativas. Elas vão desde tipificar a partir da data de nascimento e a disposição dos astros que conhecemos como Horóscopo iniciada na Mesopotâmia em 500ac, a tipificar personalidades conforme o seu tipo sanguíneo A, B, O e AB, mais recente e popular no Japão. Entretanto, talvez tenha sido o pai da Medicina a maior influência para o DISC quando há 400ac enveredou pela tipologia do comportamento humano, relacionando com as 4 estações do ano, 4 fluídos corporais e 4 elementos da natureza (água, fogo, terra e ar) chegando assim a sua classificação de Fleumáticos, Coléricos, Melancólicos e Sanguíneos. A similaridade sugere que Marston possa mesmo ter adaptado a tipologia de Hipocrates conforme as suas circunstâncias. 


Estas circunstâncias são contadas em um filme de 2017 sobre a história desse psicólogo e professor americano. Em meio ao desenvolvimento do conhecido Detector de Mentiras que também foi obra dele, seduz uma aluna desenvolvendo juntamente com sua esposa, um relacionamento no qual os três experimentam entre si sexo e moradia na mesma casa. Ele teve problemas ao ponto de passar por crises financeiras. Na tentativa de superar e sob a influência das práticas sado-masoquistas do trio, acabou criando também um ícone da cultura pop, a Mulher Maravilha. Com isso, além de inventor e definidor de perfis humanos, Marston passou a ser criador de personagens de estórias em quadrinhos. 


Hoje em dia, habitualmente o teste DISC consiste na escolha ou ordenação de palavras, cada uma relacionada com os 4 perfis definidos. Ao final, tem-se o resultado de enquadramento com maior ou menor aderência a este ou aquele perfil. Normalmente, o texto dos resultados também é padronizado e algoritmos montam o formato final de maneira a refletir nas palavras o resultado do enquadramento obtido. É um teste fácil, rápido e simples, e talvez por isso tenha se popularizado tanto, ou talvez também pela sua utilidade em resumir e padronizar os 7,8 bilhões de seres humanos. E é exatamente este ponto que merece a nossa atenção. 


Cada indivíduo possui uma história de vida diferente, mesmo aqueles que vivem na mesma casa. Mais que isso, possuem pontos de vista diferentes sobre a mesma realidade objetiva, o que leva a uma combinação infinita de possibilidades de percepções, características e amadurecimento. Diante de um quadro desse, talvez devamos considerar que a mesma pessoa possa adotar perfis diferentes dependendo da situação, ou que seja excesso de determinismo reduzir as pessoas em apenas 4 perfis e suas variações. É possível e provável que existam muitas outras possibilidades. Possibilidades estas que não são contempladas nem aparecem nos resultados dos testes porque a forma como são feitos não permite. As escolhas são excludentes, e mesmo que se repitam, sempre trarão como resultado o enquadramento nos 4 tipos básicos. Não se trata de examinar a universalidade das pessoas para compreende-las. Trata-se de encaixar esta universalidade em um modelo pré concebido, tal como conter um oceano em um aquário de mesa com 4 peixes coloridos. 


Com o uso no ambiente corporativo, esta ferramenta passou também a servir de referência para avaliações e adequações de colaboradores e cargos. Não é raro encontrar perfis nominados como Executores, Planejadores, Analistas e Motivadores que vieram do DISC. O que lembra uma outra produção cinematográfica de 2014, na qual numa sociedade futurista as pessoas são classificadas e separadas em facções conforme a sua natureza de honestidade (Franqueza), generosidade (Amizade), coragem (Audácia), inteligência (Erudição) e altruísmo (Abnegação). Vale dizer que os problemas da jovem protagonista começaram exatamente quando ela não se enquadrou em nenhuma delas ou em todas, sendo com isso a incômoda “divergente”. Ou ainda o romance  distópico de 1932 escrito por Aldous Huxley que retrata um “admirável mundo novo” onde as pessoas são classificadas em castas como alfas, betas, gamas ou deltas. Situações diferentes mas com a mesma essência. 


Muito além dos rótulos dados, estão as consequências destas nomenclaturas. Refletida nos desenhos, fotos, cores, palavras, sequência, recomendações de funções e senso comum, parece existir uma certa conotação pejorativa para perfis relacionados com estabilidade e conformidade, quando se identifica para os perfis de dominância e influência uma correlação maior com posições de liderança, reservando os primeiros para atividades de apoio e operacionais. Como se não fosse possível, desejável e necessário líderes que possuam características voltadas para os dois perfis supostamente desfavorecidos. Ou ainda que resultados, prazos, objetividade, foco, resolução de problemas, entusiasmo, comunicação, energia ou motivação sejam exclusividade dos perfis ditos privilegiados, digamos assim. 


Ao inferir e induzir só dominantes e influentes como mais adequados para  o papel de líderes, nos deparamos com outra questão ainda mais importante. Caminhar no sentido contrário ao que a demanda do mercado e as pesquisas recentes sobre liderança apontam. Isso porque há uma enorme procura por líderes humanizados, que possuam peculiaridades e condutas exatamente inerentes aos perfis de estabilidade e conformidade. Aquele esteriótipo do líder fundamentado no carisma ou no comando, colocando o resultado acima do bem estar das pessoas, do equilíbrio e da transparência parece estar cada vez mais caduco. Até bem porque ele já causou muitos problemas na história da humanidade e das corporações. Então, caso isso aconteça, o entendimento e o uso equivocado do DISC estaria na verdade perpetuando nas empresas perfis de liderança inadequados para os dias atuais e para um mundo melhor gerido.


O fato é que estamos em uma época de transformação e diversidade cujas competências dos líderes são outras. Vários autores, estudiosos, obras, artigos, depoimentos e fontes convergem nesta abordagem. Cada vez mais são apontadas características voltadas para resiliência, auto controle, ponderação, empatia, equilíbrio, disciplina, delineando líderes apoiadores e servidores, como mais significativos do que os perfis que costumamos imaginar. Grandes Universidades inclusive na terra natal de Marston, se dedicam nesta linha e tem publicado seus conteúdos. 


Para lidar com a complexidade a nossa volta, o cérebro humano procura elaborar modelos que simplificam a realidade, reduzindo-a a um ponto que possa ser mais facilmente trabalhada. Esse processo também cria padrões e referências que permitem o gerenciamento e a tomada de decisão. Trata-se de um movimento inerente a nossa racionalidade que analisa e decompõe para aprender e sintetiza para operar. 


Este fenômeno se estabelece em qualquer âmbito das nossas vidas e possibilitou enormes avanços da humanidade, seja por modelos matemáticos, seja pelas definições e conceitos desenvolvidos. Podemos fazer isso com praticamente qualquer coisa, inclusive com pessoas. E fazemos o tempo inteiro independente de testes psicológicos. É por isso que classificamos os outros como chatos, simpáticas, bons ou maus, entre muitos outros rótulos. Contudo, o fato de acontecer o tempo todo não significa que neste caso seja algo que podemos, necessariamente, dizer que está correto. 

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